terça-feira, 27 de outubro de 2009

O COLECCIONADOR


O COLECCIONADOR

"... Tudo o que tomba, é asa que se fecha, tudo o que cai, é lágrima..."

Teixeira de Pascoaes


era dia de festa. estávamos todos. nós e os outros. o mar e as gaivotas. alguns barcos e muitas crianças morenas. o sol brilhava nas pedras. as pedras refulgiam o brilho das águas. e de vez em quando um caranguejo desprevenido da memória ancestral dos deuses vinha arranhar os tornozelos leves dum miúdo. operário insano de castelos medievais que a maré insistia em destruir naquele tão peculiar castigo das forças profundas que tem o mar. segredos?
até que chegou o Vítor. mais uma ruiva. sardenta. olhos de algas. curandeiros de qualquer nostalgia. cabelos ao vento. com gotas de suor na testa de boneca de coral.
olá malta. tudo bem? a malta éramos nós. dois poetas mal tratados pelo drama. já não há tragédia. duma consciência perdida entre deus e eros. palavras dispersas nos livros nunca escritos depois do tempo ser maior e mais sereno.
levantámos o rosto melancólicamente. os poetas devem ter um sorriso melancólico mesmo quando estão felizes. o Vítor de ruiva pelas ancas. breves. fracções de luz num sinal de livre trânsito onde ele. automóvel desenfreado. corria à velocidade dum jacto último modelo. sentou-se. calça branca de marujo atracado recentemente. puxou dum cigarro dourado. truque alexandrino? e disse que aquela era a Concha. que tal? e mostrava o orgulho de coleccionador de conchas raras. esta encontrei-a nos mares do sul. bonita não é?
a malta até gosta de conchas. sobretudo daquelas que muito frágeis e delicadamente rosadas se deitam na babugem da caparica e do guincho e nos remetem para a infância de barquinhos de papel. olhou a Concha. aparição dos mares do sul. dali dos lados da malveira.
e sentimos a respiração da serra. o sumo das couves. a polpa dos nabos. as arestas dos grelos. o verde macio das alfaces. o rubor das maçãs maduras. espelhos de faces brilhantes como vulvas ébrias de sol. sedentas de chuva. esperma de mel?
poetas felizes na felicidade amarga dum descontento sempre vivo. sempre estranho e indefendido. unidos na mesma raiva contra os cigarros do Vítor marinheiro de bares e das vielas de nenhuma cidade. de todas as favelas. de nenhum país. de todos os recantos dum vício não assumido. disfarçado de erudição de todos os mundos. enchemos ali mesmo a boca de musgo. a Concha entrou-nos pela garganta____________ aos molhos de salsa picada. em garfadas de terra acabada de lavrar. e com gestos líquidos limpámos a alma nas calças brancas dum Vítor esquecido. deportado para as entranhas duma ilha só de fantasmas e morcegos. barco sem rumo nem camaradas olhava o fundo do mar procurando o tesouro perdido. lançando outras redes. mais fortes que as videiras. desta feita para os lados do nilo. e assim ficámos. felizes e contentes. enquanto a água refulgia nas pedras e o sol brilhava na água e água nascia dos olhos da ruiva que o Vítor trazia pelas ancas.

in "a mais loura de lisboa", o coleccionador, página 107, DIFEL, 1984, de Isabel Mendes Ferreira