Diz IMF
"escrever para que a alma escute o seu respirar. reclamar o amargo e o
maravilhoso. o insólito rugido de um corpo sempre floresta.entrar às escuras no sangue fervente que tanto é raiz como fruto.ser excessivo e espartano. vago e objectivo. anel e árvore. escrever para
ninguém. como quem compõe um adágio solitário e carinhoso. orquestra de
sílabas e de carne. a matéria de um violino a ser cárcere e prado . tudo na
mesma delicada sombra onde se perde a vida."
IMF, in Hora Tardia.
A obra da Poeta, Escritora e Pintora IMF está efectivamente esgotada. Esgotou cedo.
Para colmatar tão grande lacuna, deixo-vos para este período de férias um gomo de laranja doce, um bago de uva e uma talhada de melancia, da obra de Porfírio Al Brandão*.
Saboreiem que eu vou fazer o mesmo.
* Garantia assegurada por IMF.

[Palimage, 2007] O mundo é um grandecíssimo cadáver com moscas de vaivém para abrilhantar. José Cardoso Pires in Balada da Praia dos Cães
I – O CÓRTEX

Cuspir a carne por ser nauseabundo o seu odor bloco a bloco encaixado já limbo sonoro onde se acama OUTRÉM-GRITO a roer a casca e encontrando branco o subterfúgio disfarçado dizer subterrâneo pois maldita e insurrecta a garganta engravida de viscos e soberbas testamentárias EU-QUEM a abocanhar o êxodo à cauda da laranja morta ainda amamentando a cobra que desliza verde entre os gomos
[Palimage, 2005] PRELÚDIO QUARESMAL OU MONÓLOGO DO CORDEIRO MORTO PELA LANÇA VOCABULAR
ó de mim... tanta culpa na constelação dos membros. a lâmina dos beijos decepa, em órbita, figurações espontâneas que amaria eternizar.
olhai para mim... eu sou o cordeiro abençoado que abre o peito diante de vós, o excelso exemplo de quem realmente despe músculo a músculo a razão monumental do encharcamento pulmonar.
preparai-vos... prometidos estão os meus restos para a vossa ceia festiva, orgulho preliminar antes do mergulho da coroa a ensanguentar, o azul na devassidão das vossas vísceras compulsivamente arredadas do antro luzente por um bocejar matinal.
depois do sono a amnésia... visitar a fábrica dos horrores suavizados, apreciar os rostos estampados nos rótulos do produto moralizador empacotado, estudar a genealogia dos monstros de lodo artificial que habitarão o futuro.
concentrai-vos na rotação dos meus olhos inchados de sangue... vereis três éguas a parir ferrugem no fogo emudecido.
aposto os meus intestinos que na vossa endiabrada cabeça, vive somente o emparcelado mundo da probabilidade dedutiva; sei que ocorrem constantes mutações no vosso crânio e que a cada rotação da máscara cárnea surge um novo padrão colorido que mais não é do que um elementar truque de ilusionismo óptico... eu à vossa imagem ou melhor, o meu rosto de cordeiro mal morto reflectido na mesa das apostas.
projectai a minha súmula genética na vossa indisposição; apraz-me até, relembram-me velhos tempos... eram doze a comer-me e eu gostava... ainda gosto.
e os textos? queimai-os, assim como o sonho da erva que apesar de fresca era amarga, e enterrai vivo o calendário das lendas na pele caramelizada ainda a soletrar o deserto.
conto-vos que o urso imperador deu ordens queimando a pele rochosa ao vento do norte.
jangadas de cinza descem a garganta, cravando na carne o gosto repelente pela irmandade dos arbustos que se reúne todas as noites na planície enfeitada com cestos de fruta podre brotados da terra – o pequeno-almoço do monstro da nova manhã.
confesso, há muito que o beijo dos triângulos incendiou a trilogia dos espíritos, e o fumo será o perfume dos que condenam as leis da ampola do tempo.
qual sacrilégio em cada degrau... o monstro da nova manhã sozinho canta e brinca com o seu rouco eco.
de vez em quando, torna-se necessário ler o rebanho das gotas de água no vidro baço da melancolia, puzzle de trevos verdes para todo o sempre pisado – aqui tens a tua terra!
todo o meu interior exposto às moscas e aos homens... mas a minha dor deve-se ao nojo inócuo das palavras, ao tédio corrosivo do discurso que desliza entre os mosaicos de saliva perpetuados nas saias do tempo.
assim morro com esta lança cravada no peito... e da ferida apenas escorre a seiva de detritos que desisti compreender, vurmo baptismal indiciador da condensação do pecado e não da sua suposta absolvição.
em verdade vos digo, no próximo mundo o crocodilo será vegetariano.
nesta mesa onde vos espero me confesso... aqui me acuso e me calo.
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O ECLIPSE DO CÉREBRO para cada eco há um ouvido sempre pronto escutando o tambor apressado e tenaz manipulo as sombras estuais do passado faz muito frio nas passagens vocabulares e a certa altura todas as vozes se contradizem – o que é mais construído é a destruição
[Universitária Editora, 2004] CIO amancebam-se os bígamos pois é etéreo o caminho da paixão roxa – irá o corpo enlanguescer
nas núpcias como logro? amante ou locatário? eis a dúvida da nova praia – a cama enluarada é o leito fúnebre de Platão
o maganão de olhos esverdeados solta a fúria na espiral dum beijo lava-se no lago sagrado agitando as águas depois do banho reduz-se a um cadáver manchado de néon que conserva no peito um ninho de aves de sangue frio
o edifício de açúcar erigido em tempos entre as árvores de betão foi demolido e resta agora o regozijo pesaroso aquando a despedida das aves migratórias – o cadáver acena com sua mão construída de musgo e líquen – adeus aves perfumadas
[Palimage, 2002] Uma certa quantidade de gente à procura de gente à procura duma certa quantidade Mário Cesariny
CHAMAMENTO
levanta-te do chão morde as palavras soltas prostra-te agora e ajoelhado agarra toda a terra até sentires a lama a causticar os ossos
pulveriza as máscaras de calcário impostas e erguendo o rosto caminha em direcção à silhueta de lume que pulsa entre os ramos da árvore sibilina
[Universitária Editora, 2002] pousa a boca no peito fissurado da terra colhe o silêncio do que está morto regressa para onde nunca estiveste reconstrói em ti a pequena ruína dos brinquedos no quarto escuro refaz o fugitivo corpo
da rumorosa existência de papel bebe a ansiedade venenosa das palavras o sangue das perdidas aves no surdo coração da viagem
quando chegares ao límpido limiar do corpo incendeia a cruel noite da infância despede-te porque ao regressares aos tristes dias de hoje terás esquecido a breve alegria do rosto e uma luz extinguir-se-á vagarosamente no interior da mão envelhecida Al Berto ABISMO
falar da montanha o real da cordilheira de papel sem jasmim o cheiro a suor como soporífero terror dos currais ambicionados
decanto o pranto desenhando a anca absorvo o fluido predilecto a tarde em que morre o cárcere dono do esperma ressentido
uma cara desertora exibe o silêncio dum monólogo interior apagam-se mãos nas cortinas encarnadas e as pevides não ardem; ainda é cedo para ressuscitar o nódulo encarapinhado
derrapo fedendo em mim num chão de desejos rotulados a abelha brocada persegue-me ao vislumbrar a soldadura incólume prevendo a luxúria nos lábios |
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