domingo, 19 de julho de 2009

UM POETA PARA DESCOBRIR.

Uma nova revelação.


Diz IMF


"escrever para que a alma escute o seu respirar. reclamar o amargo e o
maravilhoso. o insólito rugido de um corpo sempre floresta.
entrar às escuras no sangue fervente que tanto é raiz como fruto.
ser excessivo e espartano. vago e objectivo. anel e árvore. escrever para
ninguém. como quem compõe um adágio solitário e carinhoso. orquestra de
sílabas e de carne. a matéria de um violino a ser cárcere e prado . tudo na
mesma delicada sombra onde se perde a vida."

IMF, in Hora Tardia.

Retirado do Blog do também Poeta e amigo de Isabel Mendes Ferreira, Porfírio Al Brandão.


A obra da Poeta, Escritora e Pintora IMF está efectivamente esgotada. Esgotou cedo. 

Para colmatar tão grande lacuna, deixo-vos para este período de férias um gomo de laranja doce, um bago de uva e uma talhada de melancia, da obra de Porfírio Al Brandão*. 
Saboreiem que eu vou fazer o mesmo. 

* Garantia assegurada por IMF.

Infracarnália

[Palimage, 2007] 
 
O mundo é um grandecíssimo cadáver
com moscas de vaivém para abrilhantar.
 
 
José Cardoso Pires in Balada da Praia dos Cães




I – O CÓRTEX








Cuspir a carne por ser nauseabundo
o seu odor bloco a bloco encaixado
já limbo sonoro onde se acama
OUTRÉM-GRITO a roer a casca
e encontrando branco o subterfúgio
disfarçado dizer subterrâneo pois
maldita e insurrecta a garganta engravida
de viscos e soberbas testamentárias
EU-QUEM a abocanhar o êxodo
à cauda da laranja morta
ainda amamentando a cobra
que desliza verde entre os gomos

Moral Canibal

 
 
[Palimage, 2005] 
 
PRELÚDIO QUARESMAL
OU
MONÓLOGO DO CORDEIRO MORTO
PELA LANÇA VOCABULAR



ó de mim...
tanta culpa na constelação dos membros.
a lâmina dos beijos decepa, em órbita, figurações espontâneas
que amaria eternizar.

olhai para mim...
eu sou o cordeiro abençoado que abre o peito diante de vós,
o excelso exemplo de quem realmente despe músculo a músculo
a razão monumental do encharcamento pulmonar.

preparai-vos...
prometidos estão os meus restos para a vossa ceia festiva,
orgulho preliminar antes do mergulho da coroa a ensanguentar, o azul na
devassidão das vossas vísceras compulsivamente arredadas
do antro luzente por um bocejar matinal.

depois do sono a amnésia...
visitar a fábrica dos horrores suavizados, apreciar os rostos
estampados nos rótulos do produto moralizador empacotado,
estudar a genealogia dos monstros de lodo artificial
que habitarão o futuro.

concentrai-vos na rotação dos meus olhos inchados de sangue...
vereis três éguas a parir ferrugem no fogo emudecido.

aposto os meus intestinos que na vossa endiabrada cabeça,
vive somente o emparcelado mundo da probabilidade dedutiva;
sei que ocorrem constantes mutações no vosso crânio e que
a cada rotação da máscara cárnea surge um novo padrão colorido
que mais não é do que um elementar truque de ilusionismo óptico...
eu à vossa imagem ou melhor, o meu rosto de cordeiro mal morto
reflectido na mesa das apostas.

projectai a minha súmula genética na vossa indisposição; apraz-me até,
relembram-me velhos tempos... eram doze a comer-me
e eu gostava... ainda gosto.

e os textos? queimai-os, assim como o sonho da erva
que apesar de fresca era amarga, e enterrai vivo o calendário das lendas
na pele caramelizada ainda a soletrar o deserto.

conto-vos que
o urso imperador deu ordens queimando a pele rochosa
ao vento do norte.

jangadas de cinza descem a garganta, cravando na carne
o gosto repelente pela irmandade dos arbustos que se reúne
todas as noites na planície enfeitada com cestos de fruta podre
brotados da terra – o pequeno-almoço do monstro
da nova manhã.

confesso, há muito que o beijo dos triângulos incendiou
a trilogia dos espíritos, e o fumo será o perfume dos que condenam
as leis da ampola do tempo.

qual sacrilégio em cada degrau...
o monstro da nova manhã sozinho canta e brinca
com o seu rouco eco.

de vez em quando, torna-se necessário ler o rebanho das gotas de água
no vidro baço da melancolia,
puzzle de trevos verdes para todo o sempre pisado
– aqui tens a tua terra!

todo o meu interior exposto às moscas e aos homens...
mas a minha dor deve-se ao nojo inócuo das palavras,
ao tédio corrosivo do discurso que desliza entre os mosaicos de saliva
perpetuados nas saias do tempo.

assim morro com esta lança cravada no peito... e da ferida apenas escorre
a seiva de detritos que desisti compreender, vurmo baptismal indiciador
da condensação do pecado e não da sua suposta absolvição.

em verdade vos digo, no próximo mundo o crocodilo será vegetariano.

nesta mesa onde vos espero me confesso... aqui me acuso
e me calo.


O Bailado das Facas

 
[Palimage, 2004]
O ECLIPSE DO CÉREBRO
para cada eco há um ouvido sempre pronto
escutando o tambor apressado e tenaz
manipulo as sombras estuais do passado
faz muito frio nas passagens vocabulares
e a certa altura
todas as vozes se contradizem
– o que é mais construído é a destruição

Boca do Mundo

[Universitária Editora, 2004]
 
 CIO

amancebam-se os bígamos pois é etéreo
o caminho da paixão roxa – irá o corpo enlanguescer
nas núpcias como logro? amante ou locatário?
eis a dúvida da nova praia – a cama enluarada
é o leito fúnebre de Platão

o maganão de olhos esverdeados solta a fúria
na espiral dum beijo
lava-se no lago sagrado agitando as águas
depois do banho reduz-se a um cadáver
manchado de néon que conserva no peito
um ninho de aves de sangue frio

o edifício de açúcar erigido em tempos
entre as árvores de betão foi demolido
e resta agora o regozijo pesaroso
aquando a despedida das aves migratórias – o cadáver
acena com sua mão construída de musgo
e líquen – 
adeus aves perfumadas
 

O Príncipe Nu

 
[Palimage, 2002] 
 
Uma certa quantidade de gente à procura
de gente à procura duma certa quantidade

Mário Cesariny

CHAMAMENTO

levanta-te do chão
morde as palavras soltas
prostra-te agora
e ajoelhado agarra toda a terra
até sentires a lama a causticar os ossos

pulveriza as máscaras de calcário impostas
e erguendo o rosto caminha em direcção
à silhueta de lume que pulsa
entre os ramos da árvore sibilina

Ancoradouro

 
 [Universitária Editora, 2002]
 
pousa a boca no peito fissurado da terra
colhe o silêncio do que está morto
regressa para onde nunca estiveste
reconstrói em ti a pequena ruína dos brinquedos
no quarto escuro refaz o fugitivo corpo

da rumorosa existência de papel bebe
a ansiedade venenosa das palavras o sangue
das perdidas aves no surdo coração da viagem

quando chegares ao límpido limiar do corpo
incendeia a cruel noite da infância despede-te
porque ao regressares aos tristes dias de hoje
terás esquecido a breve alegria do rosto e
uma luz extinguir-se-á vagarosamente
no interior da mão envelhecida
Al Berto
 
 
ABISMO

falar da montanha
o real da cordilheira de papel sem jasmim
o cheiro a suor como soporífero
terror dos currais ambicionados

decanto o pranto desenhando a anca
absorvo o fluido predilecto
a tarde em que morre o cárcere
dono do esperma ressentido

uma cara desertora exibe o silêncio
dum monólogo interior
apagam-se mãos nas cortinas encarnadas
e as pevides não ardem;
ainda é cedo para ressuscitar
o nódulo encarapinhado

derrapo fedendo em mim
num chão de desejos rotulados
a abelha brocada persegue-me
ao vislumbrar a soldadura incólume
prevendo a luxúria nos lábios